quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ÓDIO PLATÔNICO

Todas as pessoas já ouviram falar de amor platônico - amor puro que se fundamenta nas virtudes e é desprovido de paixões, deixando de lado os interesses até mesmo sexuais - pelo fato de alguém ter-lhe confidenciado, por ter lido ou assistido sobre o tema, ou ainda, por ter caído nas traiçoeiras garras de tal sentimento. Você, porém, já ouviu falar de ódio platônico?¹ Acredite ou não, esse sentimento existe e é mais comum do que "supõe nossa vã filosofia", sendo as salas de aula o ambiente mais propício para a observação dessa abstração às avessas. E foi nesse ambiente onde eu vi a manifestação do ódio platônico pela primeira vez.
Tudo começou com a chegada de uma nova professora de Português. Além de constantemente afônica, em detrimento de longos anos de esforço vocal, ela era estrábica - vesga, para os menos eruditos. Assim, quando a aula estava demasiadamente "animada", ela sempre gritava, ou pelo menos, tentava gritar, chamando os alunos aos carreteis. O problema é que ela olhava para o norte e nós tínhamos a impressão de que ela estava olhando para o leste, dado o desentrosamento entre seus globos oculares. 
Numa dessas intervenções, um aluno pensou que a professora dirigia uma série de palavras hostis e impropérios a ele, despertando o ódio platônico a que me refiro. A partir desse dia, ele aprontava muitas peripécias: contribuía com o efeito estufa ao liberar gases extremamente tóxicos ao redor da professora, escondia a cadeira da professora em outra sala, roubava a caixinha de giz e, com requintes de crueldade, escondia os óculos da coitada, equipamentos sem os quais ela não andava meio metro sem causar um abalroamento: era uma loucura. 
Como um ser altruísta que sempre fui, eu me preocupava com a professora na mesma proporção em que me divertia. Era uma guerra interna por que passava. Lembro-me de uma vez que a professora, falando sobre plural de substantivos compostos, perguntou:
- Pessoal, qual seria o plural de café da manhã?
- Pão, leite, queijo, manteiga... respondeu o aluno.
A turma inteira começou a sorrir e a professora quase infartou. Eu, segurando o riso, saí e trouxe um copo d'água e dei a ela.
Essa relação conturbada durou quase o ano inteiro. Contudo, as provas finais já se aproximavam e o medo da reprovação era um monstro que assombrava meu amigo. Desse modo, para a surpresa de todos, o aluno decidiu fazer um mea culpa e pediu perdão à professora. Ele assumiu os erros e prometeu não mais repetir suas atitudes irreverentes. Toda a turma, emocionada, aplaudia enquanto aluno e professora se abraçavam fraternalmente. Mas quem odeia platonicamente, experimenta uma inexplicável e incontrolável alternância de sentimentos.
No dia seguinte, quando estávamos indo para a escola, o dito aluno encontrou uma espiga de milho no chão. Não era necessário ser um perito do Instituto de Criminalística do estado de São Paulo, para perceber que alguém, depois de ter dado no máximo duas mordidas no milho, deixou a espiga cair e foi-se embora. O aluno, meticulosamente, limpou a espiga de milho, colocou-a num invólucro improvisado e levou-a consigo. Ao chegar na escola, saiu em direção à professora e fingiu estar comendo. A professora logo cresceu os olhos na espiga (de onde eu estava, tinha a impressão de que ela realmente olhava para a espiga) e ele, sem hesitar, disse:
- "Professora, trouxe para a senhora!"
- "Não precisava", pegando a espiga e mordendo-a instantaneamente. "Só está meio fria!", comentou, antes de agradecer efusivamente.
Depois que a professora afastou-se, olhei para meu amigo e vi em seu rosto uma feição de ódio e, ao mesmo tempo, de prazer. Então, perguntei:
- "Malvado, por que fizeste isso?"
Ele olhou para mim, mas não disse sequer uma palavra. Nos dias que se seguiram, entretanto, correu um boato à boca pequena de que a professora havia tido dias de rainha - se é que vocês me entendem - e como não tinha condições de vir à escola, acabou aprovando todos. De resto, só ficou um comentário do aluno:
- "Da próxima vez, eu vou trazer é uma feijoada, hahahahah!"

¹ Segundo a filosofia Daniliana, é um tipo de sentimento que causa alternância entre o bem e o mal, a beleza e a feiura, a rudeza e a gentileza.




Um abraço!

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