sexta-feira, 22 de março de 2013

A LUTA É GRANDE, MAS...

Todos sabem, supõem ou desconfiam de que ser professor é algo extremamente estressante. A labuta nunca acaba quando termina. O profissional dessa área vai para sua casa após uma jornada de trabalho e o que ele faz? Trabalha, é claro! Ele planeja aulas, prepara tarefas, corrige atividades, pesquisa.
Em certos momentos, a carga de estresse é tão insuportavelmente grande que o profissional pensa seriamente em mudar de profissão. Foi o que aconteceu comigo ontem. Por alguns instantes, eu considerei a hipótese de entrar na Polícia Militar do Rio de Janeiro. Afinal, subir aqueles morros segurando um fuzil AK-47 e trocar tiros com a bandidagem não deve ser tão estressante quanto encarar certos tipos de alunos.
Imaginem que eu preparei uma atividade de tradução e interpretação de texto. Configurei a página de modo que nela coubessem quatro cópias de um mesmo texto, para ser mais econômico e ambientalmente correto. Assim, ao chegar na sala de aula, passei todas as instruções para o aluno o qual teria a responsabilidade de repassar as informações para o restante da turma uma vez que eu precisava estar em outra turma naquele momento.
Acontece que, cerca de dois minutos depois, chega o menino:
- Professor, para que serve essa folha?
- Companheiro, vocês vão utilizar o texto para fazer a atividade.
- Entendi.
Ele retornou para sua sala, porém sequer passaram dois minutos e lá vem o mesmo cidadão de volta:
- Professor, é uma página para cada um?
- Não. Você deve recortar as páginas e distribuir, de modo que cada aluno fique com o seu texto.
- Ok.
Quando eu pensei que não, eis que o mesmo indivíduo vem até onde eu estava. Ao vê-lo vindo em minha direção, comecei a sentir algo estranho. O coração acelerou. Se eu tivesse problemas cardíacos, certamente teria sido acometido por um infarto do miocárdio.
- Professor, esse texto é para quê?
Eu respirei fundo, contei até trinta e cinco (até dez não seria suficiente) e respondi:
- Meu filho, você já leu o enunciado da atividade?
- Já!
- O que é que diz lá?
- Para procurar as palavras que eu já conheço e produzir um vocabulário.
- Pronto! É para fazer isso!
Certo de que não seria mais interpelado para responder às mesmas questões, voltei à minha aula. Contudo, por incrível que pareça, eu fui até a porta e vislumbrei aquele mesmo aluno, aquele filho de Deus, o dito-cujo vindo na minha direção, com uma cara de dúvida, coçando a cabeça e segurando uma folha de papel. Quando eu vi aquilo, numa atitude instintiva de autodefesa, saí em disparada correndo pela escola numa velocidade digna de fazer inveja até a Usain Bolt. Era uma tentativa desesperada de fugir. Graças a Deus, consegui me esconder perto do banheiro e depois que eu o vi passando, voltei pelo outro lado, fechei a porta da sala onde estava e fiquei esperando a aula terminar.
Depois de tudo, já calmo e sereno, eu encontrei o menino. Ele disse:
- Professor, procurei o senhor na escola inteira! Onde estava?
- Estive aqui o tempo todo. O que você queria?
- Eu só queria saber se o senhor gosta de graviola. Se gostar, amanhã eu posso trazer umas para o senhor.
- Que aluno gentil! Diga-me uma coisa: você conseguiu fazer a atividade?
- Bem, ainda estou com dúvidas.
- É mesmo? Posso explicar tudo de novo se você quiser...

Um abraço


terça-feira, 19 de março de 2013

É UMA GOIABA? É UMA MAÇÃ? NÃO! É UMA PYRUS COMMUNIS

Durante mais de dois anos em que trabalhei à tarde, numa cidade vizinha, eu tinha o hábito de levar uma fruta para comer na hora do intervalo. Isso porque, apesar de as cozinheiras da escola entenderem muito do riscado, eu não gostava de sopa ou de macarrão com carne moída no meio da tarde por causa do fogo do batatão (sensação de calor exacerbado típico de cidades do agreste potiguar).
Um dia, como de costume, eu estava lavando a minha fruta e preparando-me para saboreá-la. Mas, justamente nesse dia, não havia merenda na escola. Depois que dei a primeira mordida no suculento fruto, percebi um menino desconsolado, olhando fixamente para meu alimento vespertino. Fiquei um pouco inquieto, talvez constrangido, mas continuei me deliciando. Quando tornei a olhar na direção do menino, ele continuava olhando para minha fruta, fixamente. E mesmo sem ter certeza de que ele aceitaria, ofereci a fruta. Foi o mesmo que perguntar a um cego se ele quer ver!
O menino começou a comer a fruta. Freneticamente, ele abocanhava a pobrezinha, cravando seus incisivos centrais, laterias e caninos na polpa da fruta. A sua mandíbula trabalhava como se fosse um rolo compressor. Eu não resisti a assistir àquela cena por muito tempo. Um homem de neandertal, faminto há três dias, não teria tais modos. Então, fui ao banheiro e fiquei lá por cerca de cinco minutos. Ao sair, observei o menino ainda no mesmo lugar, mordendo alguma coisa. 
- "O que será que ele ainda está comendo?!", pensei. "Aquela pobre fruta não pode ser. Dela, não escapou nem a alma!", arrazoei.
Como para dirimir essa dúvida, resolvi ir até o menino. Foi uma grande surpresa: ele já tinha devorado a polpa, mas não satisfeito, estava roendo o talo da fruta. O coitadinho do talo estava amassado, contorcido, destruído pelos molares do menino. Confesso, caro leitor, que tive muita pena do talo. E quando ia me afastando, o garoto perguntou:
- "Professor, que fruta é essa?"
- "Eu até poderia te dizer, mas como você a devorou com requintes de crueldade, não vou falar", respondi.
- "É goiaba? Maçã?", insistiu ele.
- "Faça o seguinte: pegue os restos mortais dela e leve até o Instituto de Criminalística. Lá eles te dirão", retruquei.
A fruta, caros leitores, era uma pera. Coitada dela.

Um abraço

sábado, 9 de março de 2013

É LEGAL, MAS NÃO É JUSTO

De tempos em tempos, os brasileiros são surpreendidos por leis absurdas, verdadeiras aberrações jurídicas que servem apenas para mostrar o quão distante estão o discurso e a prática do legislativo nacional. A lei que estabelece cotas para negros em universidades públicas é mais uma delas.
Em primeiro lugar, toda forma de preconceito deve ser severamente combatida. Entretanto, a partir do momento em que o legislador estabelece, com base legal, um tipo de seleção distinto para determinado grupo, raça ou etnia, ele admite a existência de diferenças e reforça a ideia de um Apartheid à brasileira. É inadmissível desprezar um dos mais emblemáticos preceitos da nossa Carta Magna - a Constituição Federal - que diz sermos todos iguais perante a Lei. Em outras palavras, o legislador cria uma lei para desdizer a própria lei.
Além disso, esse tipo de favorecimento traz consigo, implicitamente, a noção de que os negros são inferiores do ponto de vista cognitivo. Mas com base em quê? Há muitos exemplos de pessoas de pele negra que atingiram o auge naquilo que se propuseram a fazer, lançando mão de sua intelectualidade. Como não lembrar da liderança de Martin Luther King Jr. observada em seus discursos épicos e verdadeiros; como  esquecer de Machado de Assis, o às da Literatura Brasileira, dono de um senso de humor extremamente rebuscado; de Kofi Annan,diplomata ganês e ex-secretário-geral da ONU;  de Joaquim Barbosa, presidente do STF entre tantos outros. Será que esses negros precisariam de alguma forma de facilitação para entrar numa universidade? Obviamente, não!
É importante ressaltar, ainda, que o Brasil é uma nação fundamentalmente miscigenada. Sendo assim, encontrar um brasileiro que não possua em sua formação genética nenhum traço afrodescendente configura-se uma tarefa muito pouco provável, para não dizer impossível.
O que fica claro aqui é mais uma atitude paliativa, mais um "jeitinho brasileiro", de tentar resolver o problema da falta de oportunidades para determinados grupos, retirando a responsabilidade das costas do poder público. Ocorre que, ao invés de eleger a cor da pele das pessoas como aspecto principal na determinação dessas cotas, os legisladores brasileiros deveriam considerar os indicadores sociais. Nesse sentido, pessoas de baixa renda - independentemente da cor de sua tez - poderiam ter o benefício das cotas como uma espécie de compensação, uma vez que estes não tiveram as mesmas chances de estudar como tem as classes mais abastadas. Ademais, o poder público deveria investir pesado na educação, garantindo a todos, seja na periferia ou nos grandes centros, as mesmas oportunidades de estudo. Só assim não haveria mais esse tipo de disparate legal.

Um abraço

quarta-feira, 6 de março de 2013

NÃO ATIRE COM A MUNIÇÃO DOS OUTORS

Em 1988, eu estava na 4ª série do primeiro grau (5º ano do ensino fundamental, atualmente). Na minha turma, havia um sujeito malvado, um canalha, uma espécie de Joey Caruso (daquele seriado praticamente inédito na TV Todo Mundo Odeia o Chris). O garoto praticava toda sorte de traquinagem. Pegava a bola que os meninos levavam para se divertir na hora do intervalo; colocava goma de mascar no cabelo das meninas; batia nos meninos; tomava e comia aquele lanche sensacional - salgadinho com din-din - e ainda ficava rindo das vítimas. Eram tempos difíceis. Mas como nada é tão ruim que não se possa piorar, eu era um dos alvos principais. Quase todo santo dia, ele me obrigava a sentar em cadeiras diferentes e isso me irritava muito, pois eu gostava de ficar na frente da sala. Eu tinha muita raiva, mas tinha mais medo ainda.
Um dia, entretanto, minha mãe pediu a meu irmão para ir comprar o pão. Eu o acompanhei até a padaria e se você está achando que eu encontrei o menino da minha turma na padaria, você acertou. Ele estava lá!
Eu olhei para meu irmão - que já era um galalau forte - e comecei a contar as coisas que aquele indivíduo aprontava na sala. Meu irmão olhou para mim e disse:
- Vai lá, dá umas porradas nele. Se ele vier bater em você, eu te defendo.
Confesso que fiquei balançado. A proposta era muito tentadora. E sem avaliar as consequências, fui até ele e comecei a provocar, enquanto meu irmão ficou escondido perto da porta.
- Ei, vem tirar onda comigo agora. Eu te quebro no meio. Tu tá achando que eu tenho medo de você? Acreditem ou não, fui eu quem disse isso.
Quando ele se virou para mim e ameaçou vir na minha direção, eu reagi - fechei os olhos -e meu irmão surgiu do nada. O menino, claro, baixou a cabeça e foi saindo de mansinho ouvindo uma série de palavras as quais não serão publicadas aqui  em detrimento de seu teor de baixo calão. Eu fiquei extremamente aliviado, como se tivera passado por um catarse (purificação definida por Aristóteles em seu livro Poética). O grande problema é que as coisas não tinham acabado por ali. No dia seguinte, haveria aula e eu só me dei conta disso quando estava voltando para casa.
Foi uma noite horrível. Não preguei os olhos. Para onde eu olhava, eu via aquele rosto encolerizado. De manhã, saí mais cedo que o habitual. Convenci o vigilante para entrar logo (dentro da escola eu estaria mais seguro, pensei) e fiquei na sala de aula aguardando.
De repente, eis que surge o menino. Segurando um chicote de goiabeira, ele golpeou a minha mesa. Eu, tal qual faria um soldado americano desarmado ao encontrar um soldado vietnamita armado até os dentes no meio da guerra, baixei a cabeça e esperei o pior. Ele aproximou-se e disse:
- Repita agora o que você estava falando ontem! E olhando fixamente para mim, ele gritou um monte de palavrão. Por incrível que pareça, essa foi a minha sorte: sua mãe era professora na escola e ao ouvir aqueles gritos, ela reconheceu imediatamente a voz do filho. Ela entrou na sala e mandou que o menino parasse. Depois disso, ela o chamou pra conversar e nunca mais o garoto voltou a me perturbar. Até hoje eu me pergunto: "o que será que ela disse a ele que o fez mudar de comportamento?". Como eu nunca encontro uma resposta, prefiro contar que ele ficou com medo de me encarar.


Um abraço